quinta-feira, junho 12, 2003

O cão de Pavlov



É razoavelmente conhecida a experiência de Pavlov que provoca o reflexo condicionado do cão que saliva ao toque de uma campainha sem a presença da comida, depois de várias vezes associar o som ao acto de comer. Todo o bom guloso sabe disto quando começa a salivar ao aproximar-se de Belém, não a do Presépio, nem a do Presidente da República, mas a Belém dos pastéis de nata...

Também de Pavlov, mas menos conhecida, é condicionar a reacção do cão à presença de um anel circular perfeito que aos poucos vai tomando a forma elíptica. Quando o cão começa a não poder distinguir entre o circulo e a elipse, rosna irritado.

Não me atrevo a dizer que a irritação dos humanos obedeça a este esquema, mas, confesso, que frequentemente me sinto como o cão de Pavlov, sobretudo diante de um interlocutor que se serve conscientemente de discursos ambíguos para levar a água ao seu moinho. E fico duplamente irritado, quando caio na tentação de fazer o mesmo. O mais popular desses discursos é o “da garrafa meio cheia ou meio vazia”... O mais intelectual é o “da razão e o das razões”...

Eu [segue-se uma argumentação que só a mim responsabiliza, mas se inspira no ensino de Miranda Barbosa, meu professor na Universidade de Coimbra, de 1957 a 1963 e cujo pensamento se encontra in A.Miranda Barbosa, “Obras Filosóficas”, organização e prefácio de Alexandre Fradique Morujão, Colecção Pensamento Português, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa 1996] entendo que só há uma razão, uma ordem fundamentadora do saber que parte de um mínimo de pressupostos aceites para um máximo de explicações cujo caminho pode ser percorrido “step by step” por quem tenha a apetência e a competência para o percorrer. Quando esta ordem se põe ao serviço de uma fundamentação racional e radical do saber, encontramo-nos com a Filosofia a qual deve conformar-se a este método único e irreversível para garantir a unidade do sistema.

E então as razões, “os conceitos de..., segundo fulano...”, isto e aquilo segundo Sócrates, segundo Platão, segundo Aristóteles, segundo Averróis, segundo Aquino, segundo Locke, Berkeley e Hume, segundo Descartes, Leibniz e Spinosa, segundo Kant, Fichte, e Hegel, segundo Husserl, Heideger Sartre e companhia, segundo Russel, Whitehead, e mais este e mais aquele, os proto e os neo “ismos”, medievais, modernos e contemporâneos, de ontem, de hoje e de amanhã?

Em princípio não há incompatibilidade entre as afirmações destes dois últimos parágrafos, a não ser quando se confunde a unidade metódica da filosofia enquanto sistema com os processos de investigação e fundamentação face aos problemas concretos com que se debate o filósofo. Estes problemas não se encontram todos no mesmo plano da realidade (a ideosfera, a ontoesfera, a axioesfera, por exemplo), nem lhes convém os mesmos processos de investigação (a analítica, a noética, a dialéctica, exemplos entre os mais usados dos processos de investigação e fundamentação filosóficos).

Há porém um problema que se vêm arrastando desde Descartes (o divórcio entre o cogito e a realidade extra mental) uma aporia que todos os filósofos têm vindo a elucidar com investigações úteis e argumentos sagazes, mas raramente resolvida, porque cada filósofo e seus seguidores arvora o método particular útil em relação ao processo de investigação em disciplina fundamental da filosofia, caso em que o método se torna inadequado para garantir a unidade metódica de fundamentação racional e radical do saber.

A Filosofia como sistema concebida nos termos que aqui se expõem tem uma exigência primeira: ser filosofia do real, isto é, dar conta racional de que o conteúdo das notas caracterizadoras que distinguem um objecto ideado (existente na ideosfera) corresponda a um ente (existente na ontoesfera, ou domínio existencial da realidade). Diz o senso comum que a realidade existe fora da mente que a pensa. É o realismo ingénuo. A história do conhecimento em marcha dá conta do mundo e da vida antes da existência do humano. É o realismo crítico. Mas, como se disse atrás, o cogito cartesiano abalou os fundamentos do realismo ingénuo e os do realismo crítico. Então, uma sã filosofia sistemática deve encontrar uma fundamentação lógica para o realismo que passa pela aplicação do processo da dialéctica aos resultados da analítica: as singularidades da ontoesfera não são nenhuma anomalia na ideosfera porque o conceito de indivíduo, não tendo conceitos subordinados, não é definível, mas é concebível como conjunto transfinito de notas caracterizadoras.

A filosofia moderna e contemporânea é intrinsecamente idealista: comporta-se como se a realidade extra mental não existisse ou, então, exista como construção da mente. Até os “existencialistas” que dizem partir da existência, acabam por deambular sem sentido no seio das reduções eidéticas propostas pela fenomenologia cuja coerência depende significativamente da decisão metódica que coloca a realidade entre parêntesis. A filosofia moderna e contemporânea é uma ideosofia (termo proposto por Jacques Maritain).Só problematiza; não dá soluções a nada e faz jus à tradicional definição anedótica de que “a filosofia é a ciência com a qual ou sem a qual nós ficamos tal e qual”. E ficamos mesmo. Ou pior: aturdidos e sonâmbulos na galáxia das ideias à solta, onde a palavra e a coisa nunca se encontram.

A primeira vítima do idealismo (a realidade imanente ao pensar) é a história. De facto, a perspectiva histórica exige o respeito pela singularidade do devir que não se define, mas apenas se narra. Como a realidade é para a cultura de cariz idealista uma construção do pensamento, a narrativa histórica solta-se ao sabor de interesses ideológicos, confessados ou não, interpretando os factos até ao ponto de os torcer ao serviço da construção de um passado que a realidade não consente ou até rejeita, e propondo para o futuro uma ordem ideal para o qual nada indica que o presente aponte.

Esta crítica não significa menos apreço pela utilidade intrínseca das investigações processuais nos vários campos do saber que a perspectiva histórica da filosofia nos oferece. Mas a pluralidade de processos que contribui para a solução de filosofemas só ganha capacidade explicativa racional e radical quando integrada num sistema com unidade metódica, isto é, no interior de uma ordem de fundamentação que parte de um mínimo de pressupostos para um máximo de explicações e que, portanto, integra e supera conhecimentos progressivamente.

O cão de Pavlov rosnava, mas habituou-se... condicionado. A cultura actual foge da realidade como o diabo da cruz. Está assim condicionada à ideia que devora ideia e rumina ideia, duplos mentais das coisas que fazem crer que a realidade é uma ilusão.