segunda-feira, novembro 17, 2003

Das razões do coração



Convém diante do computador libertar as capacidades imaginativas próprias da infância e da adolescência e desencadear os mecanismos intelectuais que lhes são peculiares para, em face do irritante monstro que se não engana, sonhar acordado, auto conscientemente iludido, com uma máquina que não tenha só razão, mas seja apaixonadamente humana.

Passemos, então, a utilizar os ditos mecanismos intelectuais tão próprios da criatividade infantil e adolescente.

Por transferência analógica, tal como o coração é bomba hidráulica, o braço guindaste e o rim filtro, o computador é cérebro. E que cérebro! Coloca gente na lua, guia sondas por entre estrelas, aponta milionários do totoloto mal cai a última bola, e até corrige automaticamente os erros de ortografia.

Mas se assim é, então a cabeça do homem serve para outra coisa: cabelo de ráfia, chapéu às três pancadas, bola de nariz vermelho, rosto de maçãs escarlate, boca que abraça o rosto em arco-íris, olhos onde desaguam rios de rugas, sorri o sol e as lágrimas esguicham, o palhaço é ainda, com os seus disparates, mais símbolo do homem que o computador.

Por identificação do objecto o engenheiro de sistemas descobriu a mecânica da razão: trata-se de uma ridícula soma de zeros e uns, bem como de uma óbvia rapidez de escolha entre alternativas ao par. Pobre razão que aborta diante de uma alternativa fechada e pára inerte à porta do mistério.

Ao findar do século XX, eis que o computador devolve ao homem a certeza de que o pensamento racional é tão só um compromisso rotineiro com a utilidade. Esperemos que a lição lhe baste e ele possa compreender a itinerância do devir e se prepare, descomplexado, para responder ao apelo que a gratuitidade pura lhe grita desde que no princípio o Verbo proclama o risco de existir.

Continua a ser do homem e nunca será da máquina o poder de evocação fantástica, outro mecanismo intelectual, que preside aos mais belos sonhos da nossa infância. O computador povoa as mais delirantes aventuras do mundo dos humanóides. Óptimo! Deixou o homem de poder justificar a auto flagelação diante dos erros quando dá murros na cabeça e grita ai que burro que eu sou. Deve antes comprar um cacete de espuma (é um hardware... soft) e desancar o cérebro electrónico sem o ferir: burro é ele, o computador, quando zurra beep, beep, porque lhe falta a memória ou se encontra com uma instrução imprevista!...


NB. Cá me vou repetindo fazendo o vai-vem entre o que há muito escrevi ali e agora vou pondo aqui.

segunda-feira, outubro 06, 2003

... há tão pouco tempo


E o que é isso do tempo antes do anúncio do princípio e depois de esgotado o fim?

sexta-feira, setembro 12, 2003

Europa, Europa, Europa!...



Europa! As coordenadas físicas marcam-lhe um espaço do Atlântico aos Urales no velho continente euro-asiático, na calote rica do planeta, o Norte, berço da civilização ocidental, esse espírito europeu profundamente convicto que o mundo obedece à racionalidade, portanto entendível e dominável pela inteligência do homem, que, para os crentes, é um ajustado reflexo da Sabedoria divina, e, para os agnósticos, o sinal da superioridade do homo sapiens.

A Europa nasceu e cresceu com o cristianismo: nela se fez história a ambivalência do que é de César e do que é de Deus. É difícil encontrar um substrato civilizacional comum donde emergissem tantos aspectos contrastantes como do europeu. Contrastes de povos, línguas, culturas, hábitos, saberes, estilos, projectos, razões, mitos e sentimentos. É ver em quantos arranjos e rearranjos do mapa da Europa se reajustaram ao longo dos séculos os diversos contrastes, até aos dias de hoje, época de outros dramáticos ajustes parcelares e regionais, onde se reivindicam poderes soberanos quando parecia vencer a tendência para os ceder em beneficio do seu exercício integrado em grandes espaços políticos e económicos.

Não há dúvida, porém, que na Europa se desenvolveu um longo processo de humanização, com raízes assentes no caldo comum greco-latino e judaico-cristão das margens do Mediterrâneo. Entendida neste sentido, no mapa-múndi, a Europa consente uma linha de São Francisco a Vladivostok e, quando porventura se sonha com uma civilização planetária de liberdade, bem-estar e respeito pela pessoa humana, os contornos desse sonho assentam em grande parte nas realizações da chamada civilização ocidental que teve por berço a Europa.

Portugal é uma singularidade. Na Europa e na Península. Tem uma fronteira fruto da vontade, traçada terra adentro no ponto ideal para não esquecer o mar, e conservada intacta, há séculos, à rebeldia do sistema geográfico, desde que D. Dinis, esse estratega do Portugal a haver, começou a lavrar a terra, o mar e o espírito; equilibrou com mares nunca dantes navegados as tendências centrípetas de Castela e lançou-se na aventura colectiva louca dos Descobrimentos, gesta genial de glórias, misérias, ambições e luxo, tanto na exploração como na dádiva, cuja expressão maior é essa mestiçagem de corpos e culturas dos falantes de português no mundo; singularidade até em ser o último a conservar um império e hoje, estranho colonialista de mãos a abanar, bater à porta dos ricos da Europa que beneficiam ainda do prestígio de terem sido os primeiros a descolonizar e aproveitam os benefícios de poderem ser os últimos a abandonar o neocolonialismo.

E cá anda Portugal na Europa. Qual? A das lágrimas de Rousseau, a dos risos de Voltaire, a do pensamento puro de Kant, mas gorda de teres e haveres?; a gregária de Jean Monnet, a pragmática de Maquiavel, a rigorosa de Calvino, mas individualista e cada vez mais xenófoba?; a da razão de Galileu, a da fé crítica de Lutero e da fé na história de Marx, mas gorda de materialismo e balofa de luxúria?

Somos hoje dependentes sem recuo da Europa individualista, materialista e hedonista, egocêntrica, gorda e balofa!...

N.B. - Continuo a utilizar meu vai-vem da memória, sem fim nem pensamento...

quarta-feira, agosto 27, 2003

Lá tens as tuas razões ou... emoções?



Tu, jovem ou adulto, não te punas: és humano e tens o direito ao erro, aproveita os encantos e desencantos da vida, di-los com palavras que evoquem música, mistura a dor e o prazer com as tintas da terra e dos céus, plasma a emoção na obra infinita da tua fantasia e canta com o teu semelhante o hino da existência - porque para criar nasceste; e quem é só razoável não afecta a criação.

Foi a raciocinar sobre modelos abstractos e os seus símbolo que o homem isolou no computador a inexorável monotonia do pensamento, incapaz de se libertar das amarras formais da identidade e da não contradição: se o que é, é, não pode ser e não ser ao mesmo tempo, e, então, ou é ou não é.

O computador é para mim a mais gratificante das invenções: só há uma razão, cabe toda num microchip do tamanho de uma unha e desta maneira ninguém me engana quando argumenta eu cá tenho as minhas razões.

Nem o senhor tem as suas, nem eu tenho as minhas. Ponhamos a razão de ambos a funcionar, step by step, que a nós mais ninguém nos leva à certa...

À certa... só o gesto de uma dádiva sem preço - o Amor!

Que os meus harpejos de sapateiro a tocar rabecão não perturbem o entusiasmo perante as novas tecnologias; elas são úteis e abriram ao mundo uma nova era. Mas todas as eras produzem as suas rotinas.

Só a paixão acorda nos adultos as reservas psíquicas da adolescência, capazes de transformar em novidade o repetido e o habitual, e de tornar familiar e possível o que é estranho e misterioso.

sexta-feira, agosto 01, 2003

Até ao fim


De 3 de Abril de 1960 a 18 de Julho de 2003


No mar são tuas cores que a luz desenha
No horizonte de uma outra rota
Segui até ao fim tua façanha
Porquê tanto ocultaste teu rumo em troca?

Partias de manhã com tua dádiva
E nós na praia morna sempre aquém
Vagas que galgavas mulher impávida
Eram serenas ondas sempre mãe

E assim fugiu de mim o teu destino
Espuma branda teu corpo que não ousei
Puras águas as mágoas do meu signo
Que ao lado da tua barca naveguei

Contempla lá do alto o mar ameno
Regressa às margens estreitas do meu rio
Repousa enfim de coração sereno
E só a vela segue como eu a guio.


Também em Poemastro me confesso

domingo, julho 13, 2003

Dali houve meu nome



O bom-nome a que temos direito nunca é mau... Sou Lamas. Perguntam-me com frequência se eu pertenço aos Lamas de... gente célebre. Não, meu lamaçal é outro, mas não tenho nada contra. A identificação civil adianta pouco ou nada sobre a pessoa. Quem vê caras, não vê corações. Aqui sou visto por mim e por outros. Mas só eu assumo a representação da minha insubstituível memória emocional.

Funcionário público, sei o que é o tacho: aconchega o estômago e amolece o engenho. Resisti e barafustei e desisti, frustrado, após 36:00:00 (anos:meses:dias). Sou um aposentado por inteiro. Nada mau: sopas, descanso e até, vejam lá, a Internet para levar o desabafo pelo universo fora...

Nunca rejeitei o passado. Não me lembro de ter desejado alguma vez construir deliberadamente o futuro. Quanto ao presente, incomoda-me a prolongada rotina da passagem. Sou um retrógrado vigilante: uma alma deste mundo com saudades do outro. Daí a tendência para nunca esconder por de trás do discurso a suposta neutralidade da razão diante do sentimento. Vão aqui alguns exemplos, já velhos, da razão com que sinto.

Se eu tivesse que repetir o passado, voltaria ao dia em que meu pai e minha mãe me conceberam. Foi o dia em que Deus se fez história em mim. A necessidade do amor, a que eu chamo o usufruto da criação sem lei, se foi inventada pelo homem, parece-me não poder ser senão impulsionada por Deus. Eu sou um crente e tento expressar minha crença, às vezes sem rei nem roque.

E por ali cresci. O ponto terrestre mais significativo do universo é o largo da minha aldeia. Trata-se do centro geográfico de uma vida cujo perímetro nunca foi além de uns quatro quilómetros até à idade de dez anos. Aprendi depois no liceu que o carro de mão era uma alavanca e na universidade que meus cabelos louros eram um gene. Como é que hei-de desagravar estas ofensas aos meus olhos de menino senão devolvendo à aldeia a ficção que a cidade me deu?

N.B. - Convém lembrar, até para a compreensão deste "post", que o projecto deste blog se integra num outro alojado noutro servidor. De lá vêm textos para aqui e daqui textos para lá. Um vai-vem da memória, sem fim nem pensamento.

sábado, julho 05, 2003

Nos Mártires da Pátria



Vou até ao Hospital dos Capuchos marcar uma consulta. “Venha amanhã, hoje estivemos em greve de manhã e não se marcam exames de tarde.” O que vale é que perto do hospital acolhe os doentes o jardim do Campo dos Mártires da Pátria.
São 1630 da tarde. Densidade enorme de tristeza por metro quadrado de bancos do jardim.
Leio no sopé de uma árvore velha:

Tu que passas e ergues para mim teu braço
Antes que me faças mal, olha-me bem
Eu sou o calor do teu lar nas noites frias de Inverno
Eu sou a sombra amiga que tu encontras
Quando caminhas sob o sol de Agosto
E os meus frutos são a frescura apetitosa
Que sacia a sede nos caminhos
Eu sou a trave amiga da tua casa, a tábua da tua mesa
A cama em que descansas e o lenho do teu braço
Eu sou o cabo da tua enxada, à porta da tua morada,
A madeira do teu berço e do teu próprio caixão
Eu sou o pão da bondade e a flor da beleza
Tu que passas, olha-me bem e não me faças mal.


Tranquiliza-te, árvore! Não te faço mal e vou olhar bem em redor.

O que há de vivo? Crianças, pombas, três garnisés atrás de galinhas. Debaixo de uma árvore, duas mesas de sueca de reformados. Ainda dizem que não cuidam dos reformados. Há um letreiro que atesta: “Árvore classificada de interesse público. Moraceae. Ficus benjamina l. Fico. Regiõe tropicais.” Uma outra árvore: “Árvore classificada de interesse público no D.GOV. IIª série 121 – 21.5.1968. Família:TAXACEAE; Nome científico: Taxus bacata l.; Nome vulgar: Teixo; Origem: regiões temperadas do Norte; Altura: 11 m ; Altura: 11,1. Medidas feitas em 1.1.91. Não sei quanto alargou a copa da árvore na última década, mas creio que dá sombra para outra mesa de bisca lambida.
Do lado (Este? Não trago bússola comigo...) do jardim, seis carros de transporte de carga com aspecto de há muito ali estacionados. O dístico nas carroçarias fechadas, folgosa, tanto contrasta como condiz com a apatia da greve. Transporte de folga (de folga, descanso, ou folga, folguedo, ou com folga nos pistões?...) Mas o logótipo é verde, uma esperança de movimento dos mártires da pátria.

Sons: cantam galos, arrulham pombos, gritam crianças, ressonam velhos, resmungam os sem abrigo.

Atravesso, sempre sem bússola, para o outro lado do Jardim. O Campo Mártires da Pátria polariza à sua volta uma significativa concentração de elementos decadentes do corpo e do espírito da pátria: o instituto de medicina legal e a morgue, hospitais, hospícios, institutos de bactérias, doenças dos olhos e maleitas do espírito, asilos e até a toponímia primitiva não desdenha. O espaço antes chamava-se “Campo do Curral por aí se fazerem as matanças de gado para o abastecimento da cidade”, e o nome actual, mais heróico, mas não menos bestial e sangrento, deve-se ao enforcamento que aí se fez dos presumidos autores da conspiração de 1817 contra o domínio inglês de Beresford. E a praça de touros, também mártires para os protectores dos animais, era ali antes de passar para o Campo Pequeno. E não esqueçamos o monumento a Sousa Martins, um santuário da crendice popular: mártires e remédios da mesma pátria.
O único apelo visível de algum progresso é alemão: Mercedes e wolkwagens de gama alta anunciam os serviços culturais da Embaixada alemã.

Apresto-me a abandonar os mártires da pátria, as crianças, os jovens, os velhos, trôpegos, desempregados, alcoólicos, mais galos, patos, pombos e cães, uma estufa da memória decadente em ruínas neste dia solarengo.

Espero o 33. “Não espere, porque há greve. Começou às 17 e 30 e vai até às 20 e 30 da noite”.

Greve no Hospital. Greve nos transportes. Já não tenho tempo de ir urinar a casa. Na empena nascente do jardim dois sólidos redentores epigráficos indicam aos “homens” e às “mulheres” que os mártires da pátria podem ao menos aliviar a bexiga. Na porta dos homens encimada pelo ícone de Lisboa em relevo, dois corvos, um na proa, outro na ré da nau de São Vicente, piam boas vindas a lisboetas e forasteiros que se aproximam para descarregar as entranhas. De igual modo sugestivo, colado na parede o anúncio de um festival de outras calendas “saberes, sabores e sons de Lisboa”, cuja sibilância escorregadia ainda mais acentuava a necessidade do alívio que fora procurar nas catacumbas dos mártires.

Procurar em vão. O pio dos corvos soturno avisava: não há mijo para ninguém...
Também eu, um mártir da Pátria.

terça-feira, julho 01, 2003

Pela boca morre o peixe



Tenho cana, carretos, linhas e anzóis. E sacos, cestos, tesouras, canivetes e alicates. Sei onde se compra o isco, tenho um livrinho com as marés, mas não me considero um pescador. Passo anos sem ir à pesca e nos anos que vou, contam-se pelos dedos da mão os dias em que abeiro os pesqueiros. Sem o traquejo da lide continuada, coloco-me tímido na enfiada de pescadores tostados pela experiência de sóis, frios, ventos e maresias e armo os aparelhos com a medrosa hesitação de quem não domina a matéria.

Há dias, ousei colocar-me na última nesga de um paredão bem saturado de canas e consegui a autorização tácita para me candidatar ao unânime isto hoje não está a dar para ninguém dos companheiros mais madrugadores. Antes de lançar, com a estudada modéstia do costume, implorei a compreensão da vizinhança: - sou novato nisto, amigos.

Normalmente, recolhe-se um incentivo, mas desta vez, o companheiro do lado reforçou minha timidez: - é novato e nota-se...

Lancei. A linha, a timidez, a afoita esperança de uma cândida ingenuidade que me acompanha desde menino. Um minuto depois tinha um peixe a estrebuchar a ponteira da cana. E nem era sargueta, era sargo, desses que enche um prato com duas batatas e uma macheia de grelos.

O vizinho penitenciou-se do remoque com o provérbio pela boca morre o peixe. Eu, atónito diante do estertor prateado do peixe na ponta do anzol, lembrei-me da sentença de Jesus que cito de memória: não é o que entra pela boca que conspurca o homem, mas aquilo que sai pela boca do homem.

Tanto morre pela boca o peixe, como o homem. Mas nota-se menos no homem, porque fala pelos cotovelos. E quanto mais fala, mais se julga vivo e mais vivo o julgamos. No entanto, a falar se esgota. Com a boca voz do cérebro, manda bocas ao mundo, esse mundo que fica tal e qual o deixamos quando a função cerebral se esgota e com ela a capacidade de mandar bocas.

Evidentemente, também a capacidade de mandar bocas na blogoesfera.

segunda-feira, junho 23, 2003

Dar com a língua nos dentes.



O sentido mais corrente da expressão “dar com a língua nos dentes” é divulgar um segredo. Mas se com a verdade me enganas, a palavra é também disfarce. Também se diz que a falar é que a gente se entende. Como há gente que se entende entre si e outra não, pelos vistos, nem toda a gente fala da mesma maneira. E como palavra puxa palavra e palavras leva-as o vento, as palavras que se apanham no ar entram e saem dos discursos como em sacos rotos.

Há registos dos significados das palavras, mas é inviável andar com o dicionário à costas a promover o entendimento entre os falantes e os escrevinhadores. Contudo, no caso particular da escrita não é de todo estulta a ideia de viabilizar no começo ou no fim do texto um glossário dos termos utilizados. Aliás, há quem o faça, nas ciências e na filosofia e, como a prática é recente, há dicionaristas especializados que reportam os vocabulários próprios dos vários saberes, e dentro de cada saber, o vocabulário próprio de cada sábio. Também não é por falta de dicionários que os humanos se não entendem, nem por falta de ocasião para dar à língua, agora potenciada pela blogosfera.

Tanto no mundo da fala como no da escrita, não é nada óbvia a garantia de que as palavras que utilizamos correspondam àquilo que elas designam. Pelo contrário, a tendência da análise contemporânea do fenómeno da cultura privilegia o discurso como relação entre termos, embrenha-se no exercício lúdico da construção e desconstrução dos sentidos, faz piruetas nas paralelas assimétricas dos semas e meta semas e goza com a indeterminação labiríntica das estruturas.

No mundo da relação discursiva, a sensação é a de que está a chover no molhado. Embriagado com as palavras, o humano rompeu o contrato espontâneo entre o conceito e o objecto concebido, vive a vida isolada da mente (a imanência), perdeu a aposta com a eternidade (a transcendência), viaja na galáxia artificial da significações e foge a sete pés da imediata expressão da singularidade dos sentidos.

Deixemos então que as emoções dêem com a língua nos dentes...

quarta-feira, junho 18, 2003

Outra vez o umbigo.



Desde que tive conhecimento da etiqueta umbiguismo para classificar os blogs com forte dose de carga afectiva mais ou menos íntima, dei em reflectir sobre o umbigo, o meu bem entendido.

Reconheço que o meu blog se inclui nesta classificação e não enjeito o risco de quem voluntariamente exibe diante doutros o exercício arriscado de se manter em equilíbrio no vértice da pirâmide, cujas vertentes mantêm fronteiras entre a vida íntima, privada e pública.

Não vejo correlação imediata entre olhar para o umbigo e a contemplação narcísica. Esta parece cair na tentação esfíngica de petrificar a própria imagem como centro do mundo. O umbigo, pelo contrário, escapa à função abstracta da imagem e impõe-se como sacramento, isto é, uma realidade visível e exterior de uma graça interior e invisível.

De facto, o umbigo assinala no corpo o fim do convívio simbiótico com a origem e o começo do encontro cada vez mais radical com a solidão a que nem a morte promete a esperança do sossego.

Quem pressionar com intenção sagrada o botão do seu umbigo abre duas portas simultâneas interdependentes que o introduzem na histórica aventura que a humanidade prossegue: a porta do amor e a porta da transcendência.

Do amor, a dádiva gratuita das suas entranhas que a mãe oferece ao mundo. Da transcendência, o nome de deus que o humano fixou para guiar o mundo e a vida à plenitude de ser.

segunda-feira, junho 16, 2003

O meu umbigo



O meu primeiro post é de Janeiro, 10, 2002. Meu blog cabe inteirinho na prateleira do umbiguismo, segundo os critérios de análise da blogoesfera propostos por JPP (é o Pacheco Pereira) no seu Abrupto.

O termo não me escandaliza. Não me tinha era lembrado dele. Como ando com a mania de dar relevo às singularidades, em detrimento dos conceitos específico-genéricos, fui realmente olhar para o meu umbigo.

Um sarilho! Falta-me elasticidade para o ver em directo. Fui ao espelho (fui mesmo, não é força de expressão) e lá estava o buraco na vertente descendente da calote abdominal.

Acho o meu umbigo bem feito, uma cratera pacífica bem desenhada onde não cabe a ponta de nenhum dos dez dedos das minhas mãos (não cabe mesmo, eu experimentei). Mas... ó diacho, se lá não cabe um dedo, e eu me lembro de limpar todos os buracos do meu corpo menos este, será que eu ando com o pipo umbilical cheio de sarro sem dar por isso?

Peguei num “bastoncillo de algodón” (não é força de expressão, peguei mesmo, como se prova pela citação original...) e esburaquei até à profundidade máxima sem encontrar lixo.
Meu umbigo anda limpinho.

quinta-feira, junho 12, 2003

O cão de Pavlov



É razoavelmente conhecida a experiência de Pavlov que provoca o reflexo condicionado do cão que saliva ao toque de uma campainha sem a presença da comida, depois de várias vezes associar o som ao acto de comer. Todo o bom guloso sabe disto quando começa a salivar ao aproximar-se de Belém, não a do Presépio, nem a do Presidente da República, mas a Belém dos pastéis de nata...

Também de Pavlov, mas menos conhecida, é condicionar a reacção do cão à presença de um anel circular perfeito que aos poucos vai tomando a forma elíptica. Quando o cão começa a não poder distinguir entre o circulo e a elipse, rosna irritado.

Não me atrevo a dizer que a irritação dos humanos obedeça a este esquema, mas, confesso, que frequentemente me sinto como o cão de Pavlov, sobretudo diante de um interlocutor que se serve conscientemente de discursos ambíguos para levar a água ao seu moinho. E fico duplamente irritado, quando caio na tentação de fazer o mesmo. O mais popular desses discursos é o “da garrafa meio cheia ou meio vazia”... O mais intelectual é o “da razão e o das razões”...

Eu [segue-se uma argumentação que só a mim responsabiliza, mas se inspira no ensino de Miranda Barbosa, meu professor na Universidade de Coimbra, de 1957 a 1963 e cujo pensamento se encontra in A.Miranda Barbosa, “Obras Filosóficas”, organização e prefácio de Alexandre Fradique Morujão, Colecção Pensamento Português, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa 1996] entendo que só há uma razão, uma ordem fundamentadora do saber que parte de um mínimo de pressupostos aceites para um máximo de explicações cujo caminho pode ser percorrido “step by step” por quem tenha a apetência e a competência para o percorrer. Quando esta ordem se põe ao serviço de uma fundamentação racional e radical do saber, encontramo-nos com a Filosofia a qual deve conformar-se a este método único e irreversível para garantir a unidade do sistema.

E então as razões, “os conceitos de..., segundo fulano...”, isto e aquilo segundo Sócrates, segundo Platão, segundo Aristóteles, segundo Averróis, segundo Aquino, segundo Locke, Berkeley e Hume, segundo Descartes, Leibniz e Spinosa, segundo Kant, Fichte, e Hegel, segundo Husserl, Heideger Sartre e companhia, segundo Russel, Whitehead, e mais este e mais aquele, os proto e os neo “ismos”, medievais, modernos e contemporâneos, de ontem, de hoje e de amanhã?

Em princípio não há incompatibilidade entre as afirmações destes dois últimos parágrafos, a não ser quando se confunde a unidade metódica da filosofia enquanto sistema com os processos de investigação e fundamentação face aos problemas concretos com que se debate o filósofo. Estes problemas não se encontram todos no mesmo plano da realidade (a ideosfera, a ontoesfera, a axioesfera, por exemplo), nem lhes convém os mesmos processos de investigação (a analítica, a noética, a dialéctica, exemplos entre os mais usados dos processos de investigação e fundamentação filosóficos).

Há porém um problema que se vêm arrastando desde Descartes (o divórcio entre o cogito e a realidade extra mental) uma aporia que todos os filósofos têm vindo a elucidar com investigações úteis e argumentos sagazes, mas raramente resolvida, porque cada filósofo e seus seguidores arvora o método particular útil em relação ao processo de investigação em disciplina fundamental da filosofia, caso em que o método se torna inadequado para garantir a unidade metódica de fundamentação racional e radical do saber.

A Filosofia como sistema concebida nos termos que aqui se expõem tem uma exigência primeira: ser filosofia do real, isto é, dar conta racional de que o conteúdo das notas caracterizadoras que distinguem um objecto ideado (existente na ideosfera) corresponda a um ente (existente na ontoesfera, ou domínio existencial da realidade). Diz o senso comum que a realidade existe fora da mente que a pensa. É o realismo ingénuo. A história do conhecimento em marcha dá conta do mundo e da vida antes da existência do humano. É o realismo crítico. Mas, como se disse atrás, o cogito cartesiano abalou os fundamentos do realismo ingénuo e os do realismo crítico. Então, uma sã filosofia sistemática deve encontrar uma fundamentação lógica para o realismo que passa pela aplicação do processo da dialéctica aos resultados da analítica: as singularidades da ontoesfera não são nenhuma anomalia na ideosfera porque o conceito de indivíduo, não tendo conceitos subordinados, não é definível, mas é concebível como conjunto transfinito de notas caracterizadoras.

A filosofia moderna e contemporânea é intrinsecamente idealista: comporta-se como se a realidade extra mental não existisse ou, então, exista como construção da mente. Até os “existencialistas” que dizem partir da existência, acabam por deambular sem sentido no seio das reduções eidéticas propostas pela fenomenologia cuja coerência depende significativamente da decisão metódica que coloca a realidade entre parêntesis. A filosofia moderna e contemporânea é uma ideosofia (termo proposto por Jacques Maritain).Só problematiza; não dá soluções a nada e faz jus à tradicional definição anedótica de que “a filosofia é a ciência com a qual ou sem a qual nós ficamos tal e qual”. E ficamos mesmo. Ou pior: aturdidos e sonâmbulos na galáxia das ideias à solta, onde a palavra e a coisa nunca se encontram.

A primeira vítima do idealismo (a realidade imanente ao pensar) é a história. De facto, a perspectiva histórica exige o respeito pela singularidade do devir que não se define, mas apenas se narra. Como a realidade é para a cultura de cariz idealista uma construção do pensamento, a narrativa histórica solta-se ao sabor de interesses ideológicos, confessados ou não, interpretando os factos até ao ponto de os torcer ao serviço da construção de um passado que a realidade não consente ou até rejeita, e propondo para o futuro uma ordem ideal para o qual nada indica que o presente aponte.

Esta crítica não significa menos apreço pela utilidade intrínseca das investigações processuais nos vários campos do saber que a perspectiva histórica da filosofia nos oferece. Mas a pluralidade de processos que contribui para a solução de filosofemas só ganha capacidade explicativa racional e radical quando integrada num sistema com unidade metódica, isto é, no interior de uma ordem de fundamentação que parte de um mínimo de pressupostos para um máximo de explicações e que, portanto, integra e supera conhecimentos progressivamente.

O cão de Pavlov rosnava, mas habituou-se... condicionado. A cultura actual foge da realidade como o diabo da cruz. Está assim condicionada à ideia que devora ideia e rumina ideia, duplos mentais das coisas que fazem crer que a realidade é uma ilusão.

quinta-feira, junho 05, 2003

Cheguei aqui.



Cheguei aqui a este quarto de quadros e flores atapetado
vindo da Barreira em tarde de figos que matavam fome
empurrado pela mesma cana e a mesma reentrância que colhia os frutos
e empurrava o eixo do triciclo que o Viquinho me deu partido
e o Escabelim forjou como forjou as colheres pequenas de pedreiro
com que construí as casitas iguais às que não tinha
moldadas pelas que deitavam sobre as nossas as sombras delas
e luziam como nossos sonhos de canas verdes
vergadas em corpos e asas de aviões de dois pés
e motores de lábios num frenesim de som que perseguia borboletas
e na fuga desenhavam a metamorfose dos voos em ziguezague
até aqui a este quarto de flores atapetado
morta com o Escabelim a forja da minha infância.

In Poemastro Me Confesso


segunda-feira, junho 02, 2003

Feira do Livro


Imagine entrar na Feira do Livro e perguntar aos visitantes “O que é um livro?” Desconfiariam da pergunta: estão por aí milhares nos escaparates, porquê a pergunta? Ora a resposta não é tão óbvia como parece, e estranharia muito se alguém avançasse com uma definição semelhante a esta: colecção de folhas de papel, impressas ou não, cortadas, dobradas e reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola, costura etc., formando um volume que se recobre com capa resistente. Ou: um livro é a publicação com mais de 48 páginas, além da capa. Ou ainda: obra de cunho literário, artístico, científico, técnico, documentativo etc. que constitui um volume. (Ver Dicionário Houaiss, 1ª ed. Brasileira).

Na minha biblioteca tenho alguns livros, aqueles poucos que escaparam às sucessivas revendas nos saldos dos anos escolares, e mais uns tantos que o continuado sacrifício do ordenado de funcionário público ainda permite. E porque os meus livros se foram assim humanizando em repetidos holocaustos do “pão para a boca” nada neles me faria adivinhar a definição fria do dicionário, objectivamente inerte.

Impõe-se por isso evocar o livro vivo. Vivo na inquieta inspiração do autor que a urdidura do texto desvela; vivo na nervosa perspectiva do editor que as tiragens fazem prever; vivo na atenta afeição do leitor que a dádiva da compra significa.
O livro, o tal produto manufacturado de papel não é senão o objecto-síntese dum mundo de problemas que envolvem autor, editor e leitor e a sociedade onde se movem, problemas comuns tantas vezes em contraditória efervescência centrípeta e que não poupam a tríade na dupla dimensão, poética e prosaica, revelada no sonho e no estômago dos actores do processo editorial.

São os problemas socioprofissionais do autor, hesitante entre o pão dos mecenatos multiformes, as alcavalas dos ócios criadores que certas profissões consentem, o salário irregular de proletário das letras que os direitos de autor prometem. É, pelo lado do editor, o quebra-cabeças dos custos, cada vez mais dependentes das regras estritas do mercado ao arrepio da função cultural do livro a que o Estado nem sempre atende com eficiência e oportunidade. É um público sem hábitos de leitura, mas aturdido sob o bombardeio da leitura consumo que lhe arremessam a granel. São, por fim, os estratos ideológicos que sedimentam na sociedade onde todo este complexo se gera, exprime e auto-alimenta.

O livro, voltemos a recordá-lo, não é apenas uma manufactura de papel, importado ou exportado entre cartolinas e cartões, mas o media que espelha a sociedade viva onde deita raízes, cresce e frutifica.

E poderá o dicionário continuar a registar a definição do livro-coisa, se nos lares, nas escolas, nas bibliotecas, jardins e transportes públicos as gentes se habituarem à companhia do livro-vida.

sexta-feira, maio 30, 2003

Tela nua


E se eu fizesse
neste papel
o teu retrato?

Tenho a caneta
- é o pincel
é exacto
neste momento
o acto
da criação.

Há os teus olhos
- é a luz
Há o teu corpo
- tela nua
na minha mão.

E na paleta
brincam as cores
da sedução.

domingo, maio 25, 2003

Chamar as coisas pelos nomes...



Pelos vistos, não é coisa fácil dar um nome à coisa, até porque, afinal, parece que a coisa sem nome não é coisa nenhuma. Daí, os apelos constantes para chamar as coisas pelos nomes. Parece haver um consenso generalizado sobre de que não há duas coisas iguais... E mais: cada coisa no seu sítio, um sítio para cada coisa e, portanto, sempre que se verificar a tentativa de meter duas coisas no mesmo sítio, não estamos a falar da mesma coisa... no mesmo sítio.
Jogo de palavras, mas não só. Trata-se sobretudo de ir ao encontro uma vez mais do real. O real narra-se; não se define, nem se classifica.
É por comodidade, tantas vezes por ignorância, muitas por preguiça da mente ou ainda por disfarçada desonestidade intelectual que a palavra coisa (da mesma família de causa) se transforma no lugar comum estereotipado e estático da realidade, cuja substância é essencialmente dinâmica e, por isso, nunca se esgota no discurso que a narra.
À expressão chamar as coisas pelos nomes, prefiro a de agarrar o boi pelos cornos.

sexta-feira, maio 16, 2003

NUM VERÃO DA MÁ CONSCIÊNCIA DO CRENTE



Poluição, protectores, sol que aquecia antes e agora só queima, um ventre disforme — anda lá, ao menos não exibas a barriga — o pai leva para a praia a cabeça ainda mais poluída do que a praia e como sempre corre atrás das circunstâncias de que se ri no íntimo, mas que consigo transporta e espalha.
O stress aflora à superfície das preocupações e das águas e na areia reduz o espaço para um corpo de cócoras, uma toalha, uns sapatos e lá dentro uns óculos, uma boa maneira de meter os pés pelo nariz e partilhar um metro quadrado do palco de areia — cada veraneante um actor único de uma plateia pejada de actores únicos exibindo-se diante de um público alheio — o rebuliço do espectáculo de Verão, tão certo no calendário como está certa a contradição que lhe levou ali o corpo ritmado pelo pretexto de um passeio à beira mar, cansado de imaginar a esperança de uma diferença.

E de repente o pai refugia-se na igualdade do absoluto: pai-nosso que estais no céu santificado seja o vosso nome…
É! Assim tal e qual: a frase estereotipada da catequese de menino conspurcada pela cultura que acha natural que deus não tenha outra maneira de se manifestar senão pela ausência — e, resignado, “Tu lá sabes por que te ocultas…”
Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu… A terra e o céu, dois lugares e uma só vontade, o império do absoluto?
E porque não reconhecem Tua a vontade de duas gotas por onde escorrega, lenta, entre quatro-olhos, dois rostos e um desejo a maresia inteira do oceano que aporta e se funde no tempero ajustado de quatro lábios, duas línguas e uma boca?
E assim na terra como no céu brinquem as estrelas no prazer instantâneo da fusão dos corpos, pálida fantasia da explosão quente de duas almas a quem acontece no marasmo calendarizado de um Verão a inesperada oportunidade de esgotar o oceano na alquimia de um beijo.

A fome prosaica da hora do almoço. O pão-nosso de cada dia nos dai hoje. Hoje. Eufemismo do pão antecipado no cartão de crédito… Também o telemóvel faz parte do pão-nosso de cada dia. E Deus deu um ao pai, outro à mãe e outro ao filho. O farto sossego da informação guia-os até ao restaurante: o mar serve-lhes o peixe e a terra o acompanhamento. Serve a quem serve. É a fartura ou a fome que está mal distribuída? À mesa readquire sentido o perdoai as nossas ofensas…

Pai, mãe e filho — a família é a última guardiã das convenções da tribo. É o último alfobre da uniformidade dos deveres e dos costumes, o último bastião colectivo da regulação dos afectos. De maneira que se o perdão tiver sentido, compete aos progenitores pedirem perdão aos filhos por serem pais e os filhos aos pais pelos netos que geram.

E não nos deixeis cair na tentação de ocultar o cais anárquico de onde partem sem regresso as velas do vento morte.

E livrai-nos do mal. Ámen.

sábado, maio 10, 2003

Criação sem lei


Gaivotas desenham na cadência azul um bailado branco. E são brancos os novelos de espuma que cavam a areia branda debaixo dos seus pés.
O mar fustiga as rochas e esculpiu na pedra com o capricho dos anos uns sáurios estranhos que vigiam a variação da cor no horizonte calmo.
O homem, só, calcorreia a corda limite das águas de um ao outro braço da harpa que ponteia a surdina musical da baía solitária.
Quantos anos esperaram as rochas pela memória que hoje as transforma em crocodilos do mar? E como era o silêncio antes de se ordenar o som nos búzios?
O homem que anda por ali à procura da solidão primordial é um crente: imagina o mundo antes de haver homens e não concebe a possibilidade de o universo poder existir para ninguém. Procura o radicalmente outro.
O homem pára de vez em quando, absorto. Como era tudo antes da sensibilidade, da inteligência e da memória? Conclui: Era tudo ao deus-dará. – o fascínio da criação sem lei só atribuível a um deus.

quarta-feira, maio 07, 2003

Uns olhos e um rosto



Uns olhos e um rosto
fixos no instantâneo de outros olhos e outro rosto
ambos, anos a fio, quedos no mesmo gesto e no mesmo olhar
que a magia da palavra fixou no riso aberto do primeiro encontro
e revelou até ao infinito relevos, toques, pele, luz
e o mordisco renovado na polpa intumescida
ondulada pela luz da cortina coada na brisa de gargalhadas
entre pasmos humedecidos de soluços brandos,
afogados nos impulsos de corpos confundidos,
leves, lentos, agitados, furiosos
ao ritmo da entrega, e da placidez partilhada do regresso
aos olhos e ao rosto, quedos no mesmo gesto e no mesmo olhar
e subitamente soltos, desprendidos e alheios a um adeus imerecido.

sábado, maio 03, 2003

Dia da Mãe



Mãe, lembrei-me hoje muito de ti e fui aos meus papéis buscar o único documento escrito que sabias fazer: a tua assinatura.

Assinatura da minha mãe


Quando nasceste, na tua e minha aldeia, campónios não iam para escola, e tu também não. Mas quando te apercebeste, à beira do casamento, que havia gente que se identificava através da assinatura de um estranho a rogo de, a determinação de mulher forte que sempre foste levou-te a aprender as primeiras letras para ao menos saber fazer teu nome.

Mãe, nunca mais escreveste nada. Mas eu sei que a tua assinatura testemunha uma grande obra. Por isso a vim colocar na Internet que espero também chegue ao céu onde te encontras.

Apoiado na tua assinatura, grito ao mundo inteiro o meu grande orgulho em ser teu filho.

Fronteira



Lamento meu caro
mas chegaste tarde à ingénua criação
e a realidade é mesmo mesmo a realidade
quando caminhas no ângulo superior direito desse castelo
donde do lado de cá avistas do lado de lá
a indiferença da distância.

Lamento meu caro
mas chegaste tarde à ingénua criação
e a realidade é mesmo mesmo a realidade
de portas e janelas
alçadas na vertente do espaço e da distância
na linha exacta em que do lado de cá
isso se chama lá do lado de lá.

Lamento meu caro
mas chegaste tarde à ingénua criação
e a realidade é mesmo mesmo isso
sem feitiço.

Em Poemastro me confesso

sábado, abril 26, 2003

Cai na real.


Há mais de um mês que não escrevo neste espaço. Acordei com esta na cabeça: vou dizer qualquer coisa nem que seja uma idiotice...
Registam os dicionários que idiotice é qualidade do que é ou de quem é idiota e/ou acção, procedimento ou dito de idiota ou de pessoa dada como idiota (Dicionário Houaiss). Ora se forem ver o termo idiota (e aconselho a consulta de um qualquer dicionário especializado de psicologia) verão que nenhum idiota é capaz de consultar o dicionário, nem capaz de dizer uma idiotice: - o idiota não fala por se tratar do grau mais adiantado da degradação intelectual.
É com sua lábia de sábio que o humano enrola tudo o que não fala na categoria do quem cala consente. Como só o humano fala, o resto que sobra é idiota, fazendo jus à etimologia da palavra que vem do grego idiotès, termo que se aplicava ao irredutível homem comum singular, um qualquer zé-ninguém face aos magistrados e aos sábios que sempre conseguem subordinar o particular a uma lei geral que desvia a atenção do comum dos mortais da inexorável realidade.
O homem foge do real como o diabo da cruz. Abomina o que é simples, e treme diante do que é único. Por isso o humano imaginou um sistema para iludir a realidade que assenta no famigerado princípio de que o homem é a medida de todas as coisas. Parece que o mistério de todos os mistérios (ver o livro de Michael Ruse, com este título, edições quasi, 1ª edição, Outubro de 2002) é saber se existe ou não uma realidade para além do que os nossos sentidos percebem. No entanto, a realidade leva sempre a melhor. Não são as utilíssimas leis da ciência que iludem a realidade (evoco aqui o prefacio ao livro citado do Prof. Alexandre Quintanilha): os prédios caiem, as pontes ruem, as barragens cedem, os aviões despenham-se, os automóveis embatem, os navios afundam-se; uma cegonha provoca um apagão num país; os medicamentos curam e matam; a genética reproduz a cor dos pigmentos, mas não impede que sejam “teus olhos castanhos de encantos tamanhos pecados meus”.
É assim a plenitude do real com ou sem as leis da mecânica, as leis da electricidade, as leis da química, ou as leis da genética.
Amigo, cai na real.

quinta-feira, março 06, 2003

Partir a diferença ao meio?...



A expressão em título é comum no mundo dos negócios. E o que é que não é hoje negócio? Apregoa-se por todo o lado que há que respeitar as diferenças, mas toda a educação se resume ao treino permanente para encontrar coisas iguais. A razão é um cata ventos de semelhanças e tem horror à singularidade.
Claro que para anunciar grandes princípios estéticos, diz-se que não há duas obras iguais e só uma é prima – a tal que é única, mas se protege com “copyright”. E... a caminho da ética, também se proclama que não há gente, há pessoas, cada uma delas com todos os direitos garantidos na célebre declaração universal que razão autoral inventou para eliminar as diferenças... entre as criaturas.
Reinventemos a cultura do ócio, a única capaz de produzir obras únicas. Tenhamos a coragem de não nos deixarmos vencer pela fruição utilitária que a razão descobre, mas abramo-nos às trocas gratuitas das diferenças que o amor único – criação sem lei – aponta.

segunda-feira, fevereiro 24, 2003

Na Ponte da memória.



Na ponte parada da memória
entre a margem da candura e do disfarce
corre enigmaticamente plácido
o distanciado mistério.

por de trás das origens
brotam silêncios de esperança,
suaves e doces,
ao encontro da primeira madrugada fria.

quem desenhou a ponte onde só a solidão pára?
contornos, cores, vozes, gestos,
carícias, matizes, melopeias e movimentos,
onde se escondem ou de onde surgem?

parada na ponte
é a solidão
prisioneira da paisagem.

Em Poemastro me confesso

sexta-feira, fevereiro 21, 2003

A medida de todas as coisas...


O conflito entre a teoria e a realidade é cada vez mais patente. É o divórcio entre a razão e a vida, aquela forçando a realidade a vergar-se perante a auto-suficiência explicativa, a vida, por seu lado, contrariando a petulante ousadia da razão poder ter razão sozinha sem o incómodo da singularidade.
Espero que quem me leia, homem ou mulher, seja uma singularidade. Eu sou na realidade uma primeira pessoa do singular. Mas os filósofos dizem que somos "homem" e como tal, "a medida de todas as coisas"... Eu ainda me não dei conta do facto de ser "a medida de alguma coisa, fará então de todas elas"... O fascínio da razão é de veras ofuscante: dá por boa a imagem que cada um faz em determinado momento das relações que mantém com a natureza e depois deita fora ou reconverte essa imagem quando encontra uma realidade que a desminta, susceptível de verificação (por mais do que um homem) . Desta forma, a razão tem sempre razão: as "coisas" que existiam antes do homem não tinham medida, porque não havia homens para as medir; as "coisas" depois do homem têm sempre a medida que a razão lhes dá enquanto houver coisas "coisas" e coisas "homem" e.. mais do que um homem para garantir a submissão da prova ao processo do contraditório. Olha que o bicho homem é mesmo uma inteligência...
Parece que ultimamente anda a inteligência atrapalhada com a chamada física quântica. Já não é o "homem" a medida de todas as coisas, mas o "fulano de tal" observador. E o que ele observa tem a medida da sua observação, pelo que não pode dizer a outro "vem ver o que eu estou a observar", porque esse outro, quando observa, modifica a coisa observada. E já não há prova real de que o homem seja a "medida de todas as coisas", mas tão só daquela "coisa". A minha intuição é de que a "teoria" passa pela medida da "coisa", a do homem e a da mulher... A psiquiatria que resolva...

quarta-feira, fevereiro 12, 2003

Até ao fundo do coração de si mesmo.


Mas haverá homem que não se encontre consigo próprio? Mas homem não é mesmo esse biota que ao encontrar a substância da sua intimidade radical a expressa no conceito de pessoa - seu seu e seu dos outros em marcha pela estrada irredutível à de qualquer outro companheiro?

Nunca haverá clone de si mesmo a não ser nas retortas das alquimias “abstractizantes”. Homem faz-se em confronto irremediável com a solidão. Caminha. Com a razão? Com a razão, bem entendido. É um falso problema, separar, no homem, a razão daquilo que supostamente o não é, só porque à razão não convém enfrentar o incómodo da sua auto reconhecida limitação. A história da actividade humana não passa de um grande cemitério de teorias racionais que a própria razão vai arrumando nos caixotes da incoerência...

Faça-se então a caminhada metafórica até ao fundo do coração de si mesmo. É escusado deixar na borda do poço o escafandro da razão. Leve-o consigo, mas não se assuste quando ele rebentar sob a pressão do silêncio. É a isso que se chama o apelo do sagrado. Religião? Não necessariamente. Por vezes, a experiência individual e a colectiva da humanidade revela que são as religiões quem mais impedem o encontro com o divino.

domingo, fevereiro 02, 2003

Rejuvenesço



REJUVENESÇO quando gratuito me abro à esperança de lá chegar
REJUVENESÇO quando por aí passo e não esqueço outros mais velhos a andar
REJUVENESÇO quando na coragem do silêncio ouço o mistério vibrar
REJUVENESÇO quando firme o pensamento caminha sem espezinhar
REJUVENESÇO quando anteponho ao agravo o gesto de perdoar
REJUVENESÇO quando atento a mim mesmo com outro caminho a par
REJUVENESÇO quando ser ouso e sem meus nem haveres teus recomeçar
REJUVENESÇO quando meu rosto te olha e tua pele fica a brilhar
REJUVENESÇO quando abatido e cansado me estendes a mão tutelar
REJUVENESÇO enfim quando envelheço sem parar

NB: Entende-se melhor este post passando pelo Livro de Visitas, antes ou depois, tanto faz...

terça-feira, janeiro 28, 2003

Para sofista, sofista e meio...


Um sofisma pode cair como sopa no mel para enganar ou confundir os sofistas de profissão que se servem da sofística para não terem o incómodo de confrontarem seus interesses com a verdade que voluntariamente desprezam. Eu, por exemplo, confesso minha predilecção por perguntas sofísticas do género: - terá sido Galileu quem pôs a terra a andar à voltado sol?

quinta-feira, janeiro 23, 2003

Para quê o quê?


Um anónimo deixou no meu Livro de Visitas uma sugestão: escrever aqui com mais regularidade. Gostaria bem de corresponder ao sugerido. Mas... sinto que não tenho nada para dizer, apesar de o mundo solicitar muita reflexão. Aliás o que não falta no mundo é reflexão ou não seja a vida uma autêntica tenda de espelhos mágicos que reflectem entre si a realidade imaginada. Onde está a realidade real? Estou convencido que se encontra bem fora da imaginação. E... cada vez a possuo menos para convencer os meus amigos de que se torna urgente quebrar os espelhos que nos reflectem.
Só me atraem desafios radicais. Por exemplo, o de um pai meu amigo que, em face do espanto do filho sobre o facto de Gandhi ter morrido apenas com uns óculos, uma tanga e um livro, lhe redobrou a estupefacção com este comentário: - acho, filho, que Gandhi morreu com muito: um livro para ler o quê, uns óculos para ver o quê, uma tanga para esconder o quê...